Desprezível

Caminhei, como se de um dia ordinário se tratasse, como se fosse mais um insignificante para acumular ao livro que tanto saboreio. Tive vontade de o seguir, uma vontade insaciável que me comia cada fugida, que me subornava com doces cantigas. Então, sem conseguir resistir, fui atrás do rasto luzente que deixava para trás, dos sonhos que largava a cada passo que dava. Estive sempre a seu lado sem o deixar aperceber-se disso, com a ideia de o ajudar a recompor o rosto morno que carregava e o corpo seco que se molhava a cada gota penetrante de chuva. Tudo lhe era invisível e só uma coisa via à frente - os pés. Não olhou para cima durante toda a viagem. Achei estranho, no início, a forma como de repente parou, como se um abismo o tivesse confrontado. Reparei nos números que trazia na cabeça, na palavra que levava atada ao coração e na data marcada na anca. Tinha os olhos inundados de medo e raiva. Retomou a sua direcção e eu a minha sincera perseguição. Passámos por um caminho de terra, com bichos de que a mesma se alimentava e, posteriormente, atravessámos uma ponte que me foi familiar – era semelhante àquele sinal de trânsito, na curva apertada da minha cidade. Sem querer ser egoísta e concentrando-me no que queria fazer, continuei essa leve e densa caminhada. O meu corpo cansou-se, os meus lábios secaram e a minha alma arrefeceu - quando dei por mim, estava parada a ver o mundo rodar a minha volta, a desaproveitar a oportunidade de um desafio, a oportunidade que ele teve. Estava a deitar num chão definitivo tudo aquilo que queria. Pus um ponto final em tudo, em mim, em nós.


[o meu amanhã (4) vai ser medonho]

3 comentários:

  1. ha escolhas que têm de ser feitas, e essa provavelmente é uma delas.

    has-de sobreviver! boa sorte!

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  2. Mon Dieu, estou completamente estupfacta. O meu preferido até agora, é sem dúvida este, sei de cor essa sensação e tudo o que é apedrejado seja qual for o caminho que se "escolhe". Beijinha marie*

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